Terça-feira, 1 de Agosto de 2006
"Boa vida "no Diario de Noticias
 



Na casa de Mariete



Isabel Lucas
José Carlos Carvalho (foto)
 

Pedro chega com o peixe pouco passa das dez da manhã. Veio de Peniche no primeiro barco e trouxe espadarte para o almoço. Aproveitou a folga do restaurante que tem na cidade para visitar os amigos. Mariete, a dona da casa, avisa-o de que a filha não está mas que haverá mais dois "amigos" para almoçar. Há 21 anos que se mudou com o marido, Veríssimo, para o bairro dos pescadores, na Berlenga, e é lá que vivem dez meses por ano, o máximo que o isolamento permite.

Do alto da varanda que dá para a praia, todas as manhãs ela vê quem chega ao porto. No Verão, os primeiros barcos saem de Peniche às nove e cerca de 30 minutos depois estão na ilha. De Inverno, o único barco que chega, quando pode, é o da Marinha. Para o render dos faroleiros e levar mantimentos a quem lá mora.

Mariete e Veríssimo são os dois únicos habitantes fixos da ilha. Nem um nem outro se queixam desses dias de solidão, quando na Berlenga estão apenas eles, os dois faroleiros e o cão do farol. Do que Veríssimo se queixa é do trabalho que dá a "confusão" de Agosto. São funcionários da Câmara de Peniche. Ele é fiscal de higiene e segurança. Ela ocupa-se do parque de campismo e dos balneários. Uma das principais funções de Veríssimo é zelar para que não falte água na cisterna. "A água doce aqui é ouro. Tem de estar fechada à chave." Mariete faz também de enfermeira "sempre que o mal não é grande". O normal é ter de massajar pés torcidos e tratar ferimentos feitos pelas bicadas das gaivotas na cabeça de quem se aproximar dos filhotes. "Fazem cada buraco..."

É cedo e ainda há pouco movimento. O calor já aquece a ilha e acorda quem dorme nas tendas. O pão fresco já chegou aos restaurantes e ao mini-mercado, aberto de Junho a Setembro. São meses em que Mariete não tem de acender o forno para cozer o pão e pode esperar pelo peixe que trazem os pescadores que ali se fixam de Abril a Setembro. Sabe bem ter isso, mas se tivessem de escolher, escolhiam o "sossego do Inverno", quando Mariete se entretém com as revistas de Verão que pede aos turistas para não deitarem fora. "De Inverno a ilha parece que é mais bonita. É mais florida. E na Páscoa é um jardim." Veríssimo, mais calado, não resiste a retocar o quadro: "É quando os chorões estão em flor. Fica tudo cor-de-rosa e vermelho."

De Março a Dezembro, Veríssimo Soares nunca deixa a Berlenga. Marieta ainda apanha o barco e vai a Peniche sempre que é preciso "tratar de alguma coisa", mas garante que se puder regressa no mesmo dia. Ele é ainda mais "agarrado" ao lugar. Só sai pelo Natal, no pino do Inverno, quando os temporais não deixam que ninguém se aproxime da Berlenga. "Cresci ali, numa barraca de madeira", diz de cigarro na mão, apontado para um canto do corredor entre as casas estreitas. O pai tinha as mesmas funções que ele tem agora. Ainda experimentou sair. Foi músico e empregado de escritório, mas "quando soube que estavam a precisar de uma pessoa para vir para aqui, não pensei duas vezes". Mariete veio com ele e com os cinco filhos, dois rapazes e três raparigas. "Um é o Beto, o cantor", informa Veríssimo, desta vez de olhar menos tímido. Cresceram e foram embora e é deles e dos cinco netos que Mariete sente falta. "Só deles. De resto não preciso de mais nada aqui." Os olhos azuis enchem-se de lágrimas, mas o sorriso não desarma. "Tenho pena de não os ver crescer, como também não vi os meus filhos..." Havia a escola e as crianças mudavam-se para a casa de Peniche, onde os mais velhos tomavam conta dos mais novos. "Sabe qual é a primeira coisa que aqui se ensina a uma criança?" É Veríssimo quem pergunta e não espera pela resposta. "A nadar". Foi coisa que Mariete, uma nazarena que aos sete anos se mudou para Peniche, nunca aprendeu. "Tens de aprender", insiste o marido. "Ah, se estivesse aflita nadava", garante Mariete e não duvida do que diz. Veríssimo ri e esconde o olhar debaixo do boné do Sporting.

Além do peixe, Pedro trouxe jornais. Um desportivo e "com notícias". Veríssimo lê as últimas do clube. Folheia o jornal e o movimento revela um anel de ouro com pedra verde e leão à vista. "O Sporting é a paixão dele", informa Mariete, que abre a porta da cozinha para revelar um cenário de canecas, copos, jarras... tudo do Sporting. Cá fora, junto à mesa das pa- tuscadas e das grandes conversas, uma cadeira retirada do antigo Estádio de Alvalade marca o lugar do chefe de família. Ontem esteve ocupada por um amigo benfiquista, um dos convidados de Mariete para a cebolada de espadarte.

publicado por ciloca às 19:48
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De Cláudia a 1 de Agosto de 2006 às 22:07
Essa "história" é bonita.
Há realmente quem precise de pouco para ser feliz.
Jinhus
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De
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